A Lei Áurea foi um momento crucial na história do Brasil e ficou marcada por grandes celebrações. Os ex-escravos, todavia, após a abolição, enfrentaram inúmeros desafios em vida.
A abolição da escravatura, que aconteceu por meio da Lei Áurea, foi um acontecimento marcante na história do Brasil e, apesar da aparente distância temporal, esse é um assunto que ainda gera inúmeros reflexos na nossa sociedade. A abolição, que aconteceu em 1888, foi resultado de uma intensa campanha popular que pressionou o Império para abolir a instituição da escravidão no Brasil.
Uma pergunta que é feita por muitos em relação a esse assunto é a respeito da vida do escravo após o Treze de Maio. Pois bem, o nosso objetivo é trazer alguns esclarecimentos a respeito disso, principalmente sobre como ficou a vida dos escravos após a Lei Áurea.
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A escravidão foi uma instituição que existiu no Brasil durante mais de 300 anos, e sua introdução em nosso território ocorreu por meio dos portugueses ainda no século XVI. Inicialmente, a escravidão no Brasil explorava apenas o trabalho do indígena, mas uma série de fatores levou os portugueses a iniciar a exploração do africano.
Isso levou ao início de um negócio extremamente lucrativo e desumano que existiu no Brasil até o ano de 1850: o tráfico negreiro. O comércio ultramarino de escravos só foi proibido no Brasil após décadas de pressão da Inglaterra, o que levou nosso país a decretar a Lei Eusébio de Queirós. Caso você tenha interesse em saber mais sobre esse assunto, sugerimos a leitura deste texto: Tráfico negreiro.
Iniciou-se nesse período um lento processo que levou o Brasil a abolir o trabalho escravo em definitivo. Esse processo, no entanto, fortaleceu-se de maneira notável a partir da década de 1870, quando a sociedade brasileira, em grande volume, começou a se mobilizar na defesa da causa abolicionista. Essa mobilização aconteceu em diversas instâncias de nossa sociedade e alcançou grupos elitizados, marginalizados, intelectualizados, movimentos de trabalhadores e, claro, os próprios escravos.
A resistência à escravidão na sociedade brasileira aconteceu de diversas formas. Os escravos rebelavam-se organizando fugas e, muitas vezes, tomando o controle da propriedade na qual eram escravizados. Outros grupos da sociedade incentivavam escravos a fugir, davam-lhes proteção quando fugiam, incentivavam revoltas, usavam espaços públicos para defender a causa, ajudavam com dinheiro, roubavam escravos de seus senhores para libertá-los em seguida etc.
O enfraquecimento da escravidão em nosso país, ao longo do século XIX, sobretudo depois da década de 1850, é perceptível pelos números trazidos pelo historiador João José Reis, que mostra a redução da população de escravos no país|1|:
1818: 1.930.000 escravos
1864: 1.715.000 escravos
1874: 1.540.829 escravos
1884: 1.240.806 escravos
1887: 723.419 escravos
Esses números transparecem, claramente, o enfraquecimento da escravidão pela diminuição na população de cativos em nosso país. A mobilização popular e as insurreições de escravos forçaram o Império a decretar a Lei Áurea em 13 de maio de 1888. Essa lei, depois de aprovada no Senado, foi levada para a assinatura da regente do Brasil, a princesa Isabel.
A Lei Áurea decretou, de maneira bem simples, a extinção da escravidão no Brasil de maneira imediata e sem nenhum tipo de indenização para os antigos senhores de escravos. Com essa lei, a grande questão que surgia era como seria a vida dos escravos ao conquistarem sua liberdade. Veremos a seguir como foi o dia após a abolição e como foi a vida do ex-escravo no contexto imediato da pós-abolição.
O historiador Walter Fraga alega que já no dia da Lei Áurea a expectativa pela aprovação da lei levou milhares de pessoas para as ruas do Rio de Janeiro, aglomerando-se ao redor do Senado e do Paço Imperial|2|. A reunião de pessoas foi acompanhada também de desfiles e de bandas que transitavam nas ruas da capital.
A lei saiu do Senado e logo depois foi encaminhada para ser assinada pela princesa Isabel. A assinatura da princesa aconteceu no meio da tarde e confirmou a abolição da escravidão. Com a notícia, a cidade do Rio de Janeiro entrou em festa e contou com a presença de homens e mulheres de todas as classes. Milhares de pessoas reuniram-se na praça d. Pedro II para celebrar a abolição. Walter Fraga afirma que chegou a 10 mil o número de pessoas|3|.
A festa no Rio de Janeiro estendeu-se durante uma semana e, conforme a notícia foi espalhando-se pelo país, a reação popular era a mesma: as pessoas saíam às ruas correndo, gritando e celebrando o fim da escravidão no Brasil. Em Recife, o número de pessoas nas ruas foi de 15 mil|4| e, em Salvador, a festa também se estendeu durante dias.
Walter Fraga explica bem o motivo de tanta celebração por conta da proibição da escravidão no Brasil:
.|5|A festa tinha razão de ser. Afinal, era o fim da escravidão. Além disso, representava a vitória do movimento popular sobre aqueles que resistiram à abolição até as vésperas do Treze de Maio. Mas o que embalava também a festa era a expectativa de que dali por diante dias melhores viriam
A preocupação com o futuro era algo marcante para os ex-escravos, desejosos de construir um futuro melhor para si e para sua família. A historiadora Wlamyra Albuquerque conseguiu exemplificar bem essa preocupação dos ex-escravos por meio de uma carta escrita por libertos e enviada para Rui Barbosa, em 1889:
|6|“Nossos filhos jazem imersos em profundas trevas. É preciso esclarecê-los e guiá-los por meio da instrução.”
A abolição da escravidão foi marcante, mas como passaram a sobreviver os escravos após a Lei Áurea? Certamente, muitas mudanças aconteceram, mas até que ponto a vida do ex-escravo melhorou? A falta de iniciativas do governo para integrar o ex-escravo na sociedade e dar-lhe algo para sobreviver contribuiu para que os antigos senhores, muitas vezes, continuassem explorando os negros libertos.
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A primeira grande reação dos ex-escravos foi a celebração. Nas grandes cidades e nas zonas rurais, os ex-escravos realizaram ou se juntaram às festividades, que se estenderam por dias. Uma outra reação foi a de mudar-se de lugar e, Walter Fraga, utilizando o exemplo do Recôncavo Baiano, afirma que um grande número de ex-escravos assim o fez|7|.
Com isso, muitos ex-escravos abandonaram as fazendas e engenhos em que foram escravizados e mudaram-se para outras fazendas ou foram para outras cidades. As migrações dos ex-escravos, segundo Walter Fraga, era parte de um esforço para “distanciar-se do passado de escravidão”|8|. Além disso, muitos se mudavam para retornar ao seu local de nascimento, para rever parentes, para procurar parentes dos quais foram separados, para conseguir um trabalho com melhor remuneração etc.
As migrações de ex-escravos geraram insatisfação de grandes proprietários, assim, esses grupos passaram a pressionar as autoridades para que essas reprimissem os ex-escravos por vadiagem e vagabundagem. Essa forma de repressão era, por diversas vezes, utilizada por grandes proprietários para reprimir e perseguir ex-escravos que não aceitavam as péssimas condições impostas pelos senhores.
Um outro mecanismo de repressão desenvolvido pelos grandes proprietários contra a liberdade dos ex-escravos era impedir que eles se mudassem. Existiram casos de ex-escravos que eram ameaçados e agredidos fisicamente para que não se mudassem. Já outros senhores acionavam a Justiça para exercer a tutoria sobre os filhos de ex-escravos como forma de impedir que eles abandonassem sua fazenda.
Muitas vezes os senhores também se negavam a pagar os salários acertados com os ex-escravos e utilizavam de ameaças quando estes demonstravam sua insatisfação. Apesar disso, muitas vezes os escravos impunham a sua vontade e muitos passaram a não aceitar determinadas condições. A migração é um desses sinais, pois muitos se mudavam, porque partiam à procura de um salário melhor para sobreviver.
Os pagamentos, conforme exigiam os libertos, deveriam ser semanais ou diários, e a jornada de trabalho, limitada. Muitos também exigiam um espaço para cultivar sua própria plantação, de onde retiravam parte do seu sustento. Os que iam para as cidades aprendiam a trabalhar nos mais diversos ofícios, como pedreiro e aguadeiro, e no caso das mulheres esses ofícios relacionavam-se com os afazeres domésticos.
Outro fenômeno importante foi as fugas de senhores de escravos, nos dias logo após a abolição da escravidão, por temerem que os escravos, então libertos, voltassem-se contra si e contra sua família. Walter Fraga destaca um caso na Bahia – no Engenho Maracangalha – onde isso aconteceu. Lá, os ex-escravos, aproveitando-se da ausência de seu antigo senhor, apoderaram-se das terras|9|.
A questão da terra também foi um fator relevante e que definiu como seria a vida do ex-escravo com a abolição. A Lei Áurea não foi acompanhada por nenhuma medida que garantisse o sustento do ex-escravo. A situação, pelo contrário, foi o inverso, pois, conforme mencionado, a lei e o aparato do Estado, muitas vezes, foram utilizados para reprimir os ex-escravos e para podar-lhes a liberdade.
O não acesso às terras que permaneceram nas mãos dos grandes proprietários e ex-donos de escravos foi um problema grave que contribuiu para reforçar o papel de dependência dos ex-escravos em relação aos senhores. As condições ruins e os salários baixos garantiam aos ex-escravos uma posição subalterna e marginalizada na sociedade.
O mesmo aconteceu nas grandes cidades, uma vez que esses libertos, sem oportunidades e sem estudo, eram sujeitos a empregos ruins e mal remunerados. A pobreza e a falta de oportunidades contribuíram para perpetuar essa parcela de ex-escravos em posições marginais de nossa sociedade, o que contribuía, inclusive, para o crescimento da criminalidade. Houve também ex-escravos que optaram por retornar para o continente africano.
De toda forma, a abolição da escravatura seguiu como um momento marcante para os ex-escravos. Muitos deles, em suas formas de se manifestar, procuravam exaltar e relembrar o Treze de Maio e a conquista da sua liberdade por meio do samba, da capoeira, da religião etc.
|1| REIS, João José. “Nos achamos em campo a tratar da liberdade”: a resistência negra no Brasil oitocentista. In.: MOTA, Carlos Guilherme (org.). Viagem Incompleta: a experiência brasileira. São Paulo: Editora Senac, 1999, p. 245.
|2| FILHO, Walter Fraga. Pós-abolição: o dia seguinte. In.: SCHWARCZ, Lilia Moritz e GOMES, Flávio (orgs.). Dicionário da escravidão e
liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 352.
|3| Idem, p. 352.
|4| Idem, p. 353.
|5| Idem, p. 353.
|6| ALBUQUERQUE, Wlamyra. Movimentos sociais abolicionistas. In.: SCHWARCZ, Lilia Moritz e GOMES, Flávio (orgs.). Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 333.
|7| FILHO, Walter Fraga. Migrações, itinerários e esperanças de mobilidade social no recôncavo baiano após a abolição. Para acessar, clique aqui.
|8| Idem, nota 7.
|9| FILHO, Walter Fraga. Pós-abolição: o dia seguinte. In.: SCHWARCZ, Lilia Moritz e GOMES, Flávio (orgs.). Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 356.